top of page

A liberdade é relativa


Imagem: Pixabay

Imagino um homem sentado na sua cadeira predileta. Às 9 horas da manhã ele toma sol na varanda do abrigo. Veste roupas alvas e calça chinelos confortáveis. O homem está barbeado, limpo e parece bem calmo. Ele olha a rua deserta e acha monótono os poucos sons que vêm da cozinha. Assim como ele, ali há outros velhos que já não falam. O abrigo é limpo, arejado e silencioso.

Do outro lado da rua há uma praça com árvores, brinquedos quebrados, bancos, um pequeno lago de águas esverdeadas com moscas, sapos e grilos que lutam pela sobrevivência.

Há também um homem sentado à beira do lago. Ele veste roupas encardidas, tem barbas e cabelos grandes e grisalhos. O homem da varanda se distrai com ele. Estuda-o. Admira sua autonomia de chegar tão perto do lago, mergulhar a mão na água densa, bebê-la, esfregá-la no rosto.

O homem do abrigo inveja o homem do lago. Avalia que a liberdade da praça vale bem mais que o repouso da varanda, do quarto, do abrigo inteiro.

O barbudo não olha para a varanda. Apenas protege suas coisas: um saco com roupas, um prato de alumínio que ganhou na quitanda, um caderno e caixa de lápis. Atenção absoluta nos objetos e na vida pulsante do lago. O mais não lhe importa. O da varanda pensa na velha frase sobre liberdade. O preço da liberdade é a eterna vigilância. Ali está a prova, assevera.

Às 11 horas uma cuidadora veio buscá-lo para o almoço. Ele gesticula por mais alguns minutos. Mas não foi atendido. Infelizmente, é preciso almoçar na hora certa. Junto aos demais idosos. Depois escovar os dentes. E descansar. Fazer a sesta. Mesmo que o sono não chegue naturalmente.

Mas ele sempre aparece, ele pensa. Há sempre algo que o traz na hora exata, todos os dias, após cada refeição. Não importa a data ou circunstância. Os velhos do abrigo estão quase sempre nos braços de Morfeu. Ou na mesa de comidas sem sal.

A liberdade tem preço. E é relativa, ele pensa. Mas existe. E nesse instante está lá fora, engole o homem do abrigo. E uma lágrima quente escorre na sua pele clara.

Tags:

bottom of page