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Coisas admiráveis


A Criação de Adão. Afresco de Michelangelo Buonarotti, em 1511

DIÁRIO DA QUARENTENA

A internet parou. Um dia inteiro sem postar ou receber nada. Ilhado como um Robinson Crusoe, embora, por enquanto, livre de canibais. O vazio das ruas entrou pelas telas, criando um vácuo que precisei atravessar como um equilibrista de circo, cauteloso, pé ante pé. Vazio em todas as janelas, virtuais e físicas. Fazer o quê, nesse silêncio, sem rádio sequer? Eis a falta da velha radiola, dos cds que jazem sem ter onde tocar. Mudez total. Rascunho essas palavras sem leitor, até que a luz verde do roteador pisque. E resolvi fazer uma lista, coisa recomendável pra passar o tempo. E começo pelo lado favorável: das coisas que eu gosto. Essa é fácil: Recife; Santa Cruz; gestos e carinhos de mulher; livro cheirando a novo; ligar para (alguns) amigos e falar besteira; chorinho; Jacob do Bandolim; Pixinguinha; Henrique Annes; Quinteto Armorial; uísque com gelo; cerveja malte puro; chapéu de palha; linho branco; cocada; lenço de pano; hotel no Rio de Janeiro; hotel em todo lugar; peixada com azeite e pimenta; caldinho de feijão; escrever cartas e perfis; editar revistas e jornais; desenhar sem saber; alpercatas macias; peruar dominó em tarde preguiçosa de domingo; visitar museus em todo lugar onde vou; bar; mesa com toalha de pano; romance antigo; poesia; crônica; bossa nova; Baden Powell cantando os afrosambas; Vinícius de Moraes; Botafogo; Missa com bom pregador; lembrar nomes e casos de moças passadas; sentir saudade boa; banho de mar; cachaça gelada com limão; água de coco; Copacabana; achar livro bom e barato em sebos; cinema dos anos 70; cinema francês; contar pros meus filhos as travessuras que aprontei e vê-los se divertir; cheiro de lençol lavado; Antonioni; Fellini; Buñuel; coleção do Pasquim; Jaguar, o cartunista; matinê; cafezinho com adoçante; blocos de desenho; lápis graduado; pensar na morte com naturalidade; bendizer a vida; sucos de cajá, caju, laranja; vitamina de banana; pão com manteiga; cartola, o prato; Cartola, o sambista; sorrir com os filhos e netos; rezar antes de dormir; andar pela praia; lp de poesia; ver a chuva cair quando estou vadiando no interior; passar pelos colégios onde estudei; lembrar o nome (dona Edna) e o rosto da professora por quem me apaixonei; Drummond; o milagre do saldo positivo no final do mês; Tom Jobim; gente suave; refazer velhas amizades; tapete macio; camisa de botão; camiseta branca de algodão; relógio; objetos de couro ou madeira; torcer pelo sucesso dos meus filhos, em tudo, se Papai do Céu deixar; silêncio; solidão; e fim. Faça a sua lista.

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