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Domingo virtual


Quarto em Arles. Pintura de Vicent van Gogh, 1889

DIÁRIO DA QUARENTENA

Quando pintou Quarto em Arles, Vincent van Gogh reproduziu o cômodo da pensão em que morava. Era setembro de 1889, quando ele fez esta terceira e última versão da obra. “É simplesmente o meu quarto. É a cor que faz tudo, dando, por meio da simplicidade, maior estilo às coisas e sugerindo a ideia de calma ou, naturalmente, de sono. A presença do quadro, em resumo, deve acalmar a cabeça, ou melhor, a fantasia”, escreveu o pintor. A lembrança da obra chegou-me neste domingo de quarentena. Madrugada ainda, o sol se esguelhava pelas fendas da cortina, e as formas foram surgindo em volta da cama. Não era calma, nem sono, nem silêncio. Antes, solidão. Domingo de retiro antecipado. O acordar abrupto e lá estão as coisas intactas: o armário, a mesinha, o ventilador, o espelho, a moldura. O quadro no quarto. Nove metros quadrados, calculam minhas retinas. O teto branco, insetos no lustre, porta, maçaneta, tudo visto e decorado deste travesseiro que me impulsiona para fora da cama. O domingo foi vazio e passou modorrento. A internet caiu. Voltou à tarde fazendo jorrar gifs, memes, notícias, números, ansiedade. Receio de sair em busca de café. Exercício respiratório, acalma, relaxa. Um chá de erva-doce, não é a mesma coisa, mas serve. Revisar um texto, cortar, cortar, extrair da página o que não precisa ser dito. Acabou a tinta da impressora. Volto às telas online. O mundo precisará agradecer de joelhos aos garis, enfermeiros e seus auxiliares, entregadores, comerciantes, verdureiros, médicos, técnicos, motoristas que arriscam suas vidas para possibilitar a nossa. Ligo o rádio no celular. Emissoras do mundo inteiro num toque. Recomendo: www.radio.garden Escuto bossa nova, jazz, clássicos. Essa facilidade de acessar arte de excelente qualidade praticamente de graça, é a melhor coisa desse século. Um bálsamo. Sento na varanda para tomar sol. Bebo uma cerveja. O estoque está acabando. Mandam-me links de livros e revistas grátis. Uma enxurrada de coisas pra ver - ler está fora de cogitação, não há tempo nem vista que deem conta. É tarde, vazio, silêncio. Mas, afinal, passou até rápido essa primeira semana de emergência. E ainda não arrumei o guarda-roupa, como prometi a mim mesmo no começo da semana. A inércia venceu.

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