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Gripes passadas


O Doutor. Pintura de Samuel Luke Fildes, em 1891

DIÁRIO DA QUARENTENA

Tudo indica que entramos numa fase mais delicada dessa tormenta. E precisamos exercitar a calma. Notícias dão conta que aumentaram, nesta quinta, 26, as hospitalizações de pessoas com a tal “gripezinha” - que Deus perdoe os infames. Há relatos de muitas sub notificações, o que mascara o quadro. É momento de redobrar os cuidados que já estamos tomando: lavar bem as mãos, ficar em casa, limpar maçanetas, interruptores e tudo o mais que seja de uso comum da família. Evitar contatos perigosos. Sair apenas para o extremamente necessário. Exercitar-se, quando possível, conservar a mente arejada, suave, conversar com a companhia que por acaso seja estressada, mostrar que é essencial manter o ambiente agradável, para o bem de todos. Isso vai passar. Sairemos daqui mais fortalecidos, cheios de histórias, mais experientes e bonitos - por dentro e por fora. Passei a quinta-feira lendo. Arranjei uma posição legal no sofá, uns textos bem escritos, um ângulo bem ventilado, silêncio, calma, claridade, mandei ver. Em paz. Espanhola Aprendi algumas coisas sobre epidemias que nos atingiram. A espanhola, em 1918, logo depois da primeira guerra, pegou 50% da população mundial e matou cerca de 100 milhões. Falam que um dos remédios inventados no Brasil durante a “espanhola” ficou conhecido na posteridade como caipirinha. Ela mesma: cachaça, limão e açúcar. Já foi remédio, um dia. Asiática Depois sofremos a asiática (ou pandemia de influenza) de 1957 para 58. Também num pós-guerra, embora mais de dez anos após o seu fim. Matou mais de 2 milhões de pessoas em todo o mundo. Trinta mil no Brasil. Eu tinha um aninho. Não sei como escapei. Os primeiros sinais da asiática vieram da China e redondezas. Os jornais brasileiros seguiam sua rota macabra, torcendo para a danada não chegar por aqui. Uma edição do Diário de Pernambuco, em junho de 1957, apostava que “A gripe asiática não chegará ao Recife”. Mas chegou. Sintomas Dizem que os pacientes eram capazes de identificar o início da gripe asiática no minuto exato, com as pernas bambas e um calafrio seguido de prostração, dor de garganta, nariz escorrendo e tosse. Ao mesmo tempo, sentiam muita dor nos membros e cabeça. A seguir, febre alta. Crianças pequenas, principalmente meninos, sofreram sangramentos no nariz. A reportagem do Diário da Quarentena conversou por telefone com o senhor Severino Santos, 87 anos, que lembra tudo que viveu durante a epidemia. “Eu morava no bairro de Casa Amarela e trabalhava numa oficina de serralharia. Ouvia falar da tal gripe asiática, mas era uma coisa distante. Parecia que nunca iria chegar na nossa cidade. Mas aconteceu. Num dia normal de trabalho, apareceu uma febre e eu comecei a vomitar, a manhã inteira assim. Então fui pra casa e fiquei deitado uns três ou quatro dias, com febre, vomitando, achei que ia morrer. Lembro-me que tentava beber água ou leite, mas nada ficava em mim. Vomitava tudo. Minha mãe fazia compressas na minha testa, dava sopinhas, mas nada adiantava. Eu sentia todos os músculos e articulações do meu corpo doendo. E não conseguia dormir. Só no terceiro ou quarto dia eu parei de vomitar, consegui dormir e tomar a sopa. Daí, minha mãe aplicou-me uma vacina, ela mesma fez, porque não havia médico nem enfermeira disponível. No dia seguinte, ela ficou doente. Ainda hoje penso que ela suportou a doença até que eu ficasse bom e pudesse tomar conta dela. Recordo de cada detalhe da asiática, mas, penso principalmente na minha mãe, que salvou-me a vida e ficou de pé para tomar conta de mim. Há gesto de amor maior?”. Certamente, não.

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