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Sonhar é preciso

Estereoscópio. Pintura de William Kentridge, 1999

Recebo e agradeço aos céus pelas fotos dos netos que chegam, agora diariamente, ao meu telefone. A netinha mais nova já pega a mamadeira sozinha. Todos muito lindos na pureza e alegria da infância. Suas fotos são o principal oxigênio das tardes longas. Saber que eles estão bem, assim como os três filhos, donos dos seus narizes, bonitos, saudáveis, cuidando da vida e me dando luzes fundamentais nesse século de tantas novidades, é o que me deixa animado para querer continuar e ver no que isso vai dar. Visto a camisa do meu tricolor e sinto uma sensação boa. O contato físico com algo muito importante na minha vida, que me acompanha desde os primeiros anos, que me emocionou tantas vezes, decerto que com raras alegrias e frequentes angústias e decepções, mas, assim mesmo, querido. Observei o quanto (quão é antigo, mas cairia bem) é urgente saber ouvir e acolher quem esteja ao seu lado nestes dias isolados. Não há espaço para qualquer egoísmo, afetação ou arrogância. Humildade é a palavra de ordem. Compreender e acatar opinião contrária à sua, torna o ambiente mais iluminado, alegre e fácil de conviver. Somos nós que tornamos o nosso lugar melhor. Como no desenho Estereoscópio, do sul-africano William Kentridge. Em ambiente árido, cinzento e sufocante, apenas das pessoas (ou da natureza) poderá brotar alguma cor, vida e luz. Há poucas árvores na minha rua. Imperam palmeiras. Pássaros se equilibram nos rolos de fios. Impossível fotografar nas ruas da cidade sem que apareçam fios ou carros. Não nestes dias. Ideais para algum fotógrafo atrevido, que tentasse desafiar a indesejada. Há uma solitária mangueira. A árvore tem uma sombra imensa, que se movimenta sob o sol do meio-dia. Estarei delirando ou iludido: a sombra move-se. Abro uma latinha de cerveja para relaxar. Apanho dois pesos de 3 kg e faço exercícios nos braços. Encontrei uma velha caixa de charutos, com cheiro muito bom de madeira, entupida de cartões postais: Rio, Amsterdam, Paris, Buenos Aires, Santiago, Belo Horizonte... O “meu povo” viajava. Menos eu. Evito parar o tempo inteiro na frente da TV ou internet. A overdose de notícias também faz mal. Vejo as notícias três ou quatro vezes por dia. No começo da manhã, meio-dia, final da tarde e, às vezes, à noite. Leio fontes em quem confio no tuíte e nos sites. Além disso, Globonews e alguns jornais, daqui e de fora. Só. Já é o bastante pra azedar a vida - ou deixar alguma luzinha acesa na mesa da esperança. Na noite do domingo tive um sonho inquieto, como no livro de Kafka. Mas não acordei transformado num inseto. Havia um pântano à minha frente e eu estava sozinho. Escutei uma voz cavernosa falando coisas como num sermão, mas eu não entendia o idioma e o pântano começou a se movimentar rapidamente à minha frente, como areia movediça nos filmes de Tarzan. Então um raio explodiu no céu e as luzes acenderam o mundo. Era dia e acordei com o sol batendo na minha cara, o que facilitou a interpretação. Acho que não precisarei contá-lo para algum psicanalista discípulo do doctor Freud - para quem “o homem virtuoso se contenta em sonhar o que o homem mau faz na vida real”. Pois não é que há muitos homens maus, péssimos, abjetos se aproveitando do momento tão frágil para aplicar golpes nas vítimas da tragédia? Eu recebi no zap zap uma mensagem forjada de um ministério, perguntando se eu gostaria de receber os tais 200 reais que o governo prometeu pagar aos mais necessitados. Obviamente que nem considerei a possibilidade de clicar na mensagem. Mas, quantos irmãos e irmãs de infortúnio, idosos como eu, não estarão caindo em golpes semelhantes? É repugnante que haja pessoas tão más. Mas, é a alma humana, retratada tão bem nos clássicos. Então eu leio (não sei se é verdade) que William Shakespeare escreveu Rei Lear e Macbeth numa quarentena. E que Isaac Newton também fez grandes descobertas numa quarentena. E eu paro por aqui, antes que o bolso do pijama comece a jorrar a água azul da falsa erudição.

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