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Mundo mais solidário

Limpeza de janelas, pintura de Aaron Douglas, 1935

DIÁRIO DA QUARENTENA

Acordei cedo, dormi razoavelmente bem. É uma segunda-feira nublada. Tempestades isoladas com raios e trovões, anunciaram. Mas ficou mesmo no chove-não-molha.

Cenário sem cor do lado de fora das janelas. Olho os e-mails, tomo um café, vejo notícias. Quedo-me, cansado, antes de fazer qualquer coisa.

Mais um café. Lembro a frase antiga de Blaise Pascal: “A infelicidade de um homem começa com a incapacidade de estar a sós, consigo mesmo, num quarto”.

Alguém fala sobre os cuidados que os supermercados estão tomando: medem temperatura e higienizam as mãos de quem entra. Limpam carrinhos, evitam aglomeração. Espero que algumas pessoas fiquem um pouquinho mais civilizadas. A quarentena terá feito um bem enorme.

Estou sem fome. Mais um café. Acho graça no estranho cumprimento com os pés ou cotovelos. Nós tentamos ser bem-humorados até em funerais. Mas há uma certa melancolia em tudo isso.

Pensei numa costela assada no forno. Num caldeirão fumegante com uma peixada portuguesa. Um vinho tinto bem gelado. Um prato de crustáceos vermelhos e temperados com azeite. É hora do almoço. Comi arroz branco e um ovo e duas rodelas de tomate. Suco de laranja. Desse jeito, não ganho imunidade.

Faço uma faxina ligeira. Preciso ter certeza de que a minha área está bem protegida. Álcool, água sanitária, limpol, lysoform, sabão amarelo. É um novo mundo que está surgindo. E talvez a gente nem perceba essa mutação. Simplesmente, vamos cair nele. Um mundo digital, isolado.

Imagino que novas roupas vão surgir. Os estilistas já devem estar bolando algumas coisas tipo ficção oriental, túnicas. Sei lá. Não entendo, só imagino.

E a poesia? E a literatura? O papel perderá ainda mais protagonismo. O digital se impõe, devastador, definitivo. Surgirão novas e mais completas impressoras 3d.

Eu e minhas alucinações.

Só sei que a vida atual seria impossível sem conexão wifi.

E a solidariedade. O distanciamento obrigatório desperta um paradoxo que exige solidariedade. Agora todos sabem o que todos estão passando. Somos, finalmente, iguais no isolamento social. Por isso solidários. E desconfiados.

As raras pessoas mascaradas e enluvadas que passam na rua têm evitado umas às outras. Evitam se olhar, como se houvesse uma pergunta solta no ar: você é portador? E passam rapidamente pelas calçadas, cabeças viradas para o outro lado.

Mas prevalece no caos um espírito comunitário, do qual falei ontem. A coragem heroica de pessoas que tornam possível uma vida quase normal e cotidiana. Elas vendem pelas ruas, entregam remédios, comida, bebida, água, atendem nos mercados e restaurantes, padarias e farmácias. Fazem a vida funcionar e garantem a sobrevivência da cidade.

Fazem-nos lembrar daqueles que combatem pela liberdade durante as guerras. Estamos sitiados, mas sabemos que podemos contar com eles, combatentes corajosos e solidários.

Bálsamo da solidariedade que ameniza a nossa pesada solidão.

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