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Pandemia não é guerra


Hospital militar, pintura de Sophia Uranova, 1962

DIÁRIO DA QUARENTENA

Acabem com esse papo de “guerra” e de escolher quem vai viver

Nas primeiras campanhas de vacinação contra a gripe, correu uma onda de boatos sobre uma suposta intenção de “matar os velhos”. Virou piada, mas, certamente ainda existam idosos que acreditam nisso. Principalmente agora, quando os boatos viraram ameaças de verdade, por parte de pessoas como o próprio ministro da Saúde, Nelson Teich.

Autoridade paga com dinheiro público para coordenar as ações em defesa da saúde e da vida de todos os brasileiros, esse cidadão que tomou posse outro dia, gravou um vídeo dizendo que “pode ser preciso escolher entre a vida de um idoso e a de um adolescente, em nome da sustentabilidade financeira do sistema de saúde público”.

Saúde não é mercadoria

Na gravação, o doutor Nelson defende o seguinte: “você tem uma coisa fundamental que é: como você tem dinheiro limitado, você vai ter que fazer escolhas. Então, você vai ter que definir onde você vai investir”.

E continua: “então, eu tenho uma pessoa mais idosa, que tem uma doença crônica, avançada, e ela teve uma complicação. Para ela melhorar, eu vou gastar praticamente o mesmo dinheiro que eu vou gastar para investir num adolescente que está com um problema. O mesmo dinheiro que eu vou investir é igual. Só que essa pessoa é um adolescente que vai ter uma vida inteira pela frente, e a outra é uma pessoa idosa que pode estar no final da vida. Qual vai ser a escolha? ”, conclui. E a escolha dele é clara.

Mas pandemia não é guerra

Outras pessoas andaram falando em “tese de guerra” pela qual, se tiver de escolher entre um jovem e um idoso, o aparelho respiratório, por exemplo, seria utilizado no paciente mais novo, que tem mais chance de sobreviver.

É um argumento canalha e desumano. A pandemia não é guerra. É muito diferente. Numa guerra de verdade, o desafio é curar os soldados e mandá-los de volta para a batalha. Na pandemia, o objetivo único e exclusivo é salvar a todos para continuarmos vivendo. E da melhor forma possível.

É, também, um argumento perigoso. Segundo essa maneira de pensar, a escolha poderia ser utilizada em outros casos: teria um empresário prioridade sobre o seu empregado? Um homem branco sobre uma mulher negra?

Respeitem o Estatuto!

A Lei 10.741/2003 (o famoso Estatuto do Idoso, que todos devemos saber de cor e salteado), determina uma série de direitos a que as pessoas com mais de 60 idade fizeram jus. O seu artigo 3º diz textualmente:

Art. 3.º - É obrigação da família, da comunidade, da sociedade e do Poder Público assegurar ao idoso, com absoluta prioridade, a efetivação do direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, à cultura, ao esporte, ao lazer, ao trabalho, à cidadania, à liberdade, à dignidade, ao respeito e à convivência familiar e comunitária”.

As conquistas dos idosos não podem ser ameaçadas por decisões ou discursos que permitam um genocídio dos mais velhos.

Por outro lado, nas suas diretrizes para prioridades na admissão em UTIs, o Conselho Federal de Medicina considera que a prioridade de admissão deve respeitar critérios de uma escala de 1 a 5, partindo de pacientes com alta probabilidade de recuperação até os pacientes com doença em fase terminal.

O artigo 9º diz que “as decisões devem ser feitas de forma explícita, “sem discriminação por questões de religião, etnia, sexo, nacionalidade, cor, orientação sexual, idade, condição social, opinião política, deficiência, ou quaisquer outras formas de discriminação”.

Não há, portanto, o que argumentar sobre o tema. Quem defende a prioridade no tratamento a partir do critério da idade está cometendo um crime.

Voltando ao ministro. Antes de falar essas baboseiras, ele poderia dar uma lida no Estatuto dos Idosos. Existe uma edição publicada em 2007 pelo próprio Ministério, que ele supostamente coordena.

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